O destino da viagem: cidade de Goiás (Goiás Velho), terra
de Cora Coralina, e algo mais. Sinalização precária na autoestrada, talvez; desatenção,
mais provável. Resultado: chegada não planejada, mas triunfante na pequena e
simpática cidade de Veneza de Goiás. Italianidades aqui e acolá e por todo o
lado, cidadezinha provocante. Indecisos,
entre rodar adiante - cerca de 200 km (informaram), desistimos. Melhor Pirenópolis, intenção inicial de Paulo
e Júlia. Resignados, recuamos; novo destino: Pirenópolis – singeleza princesa das
nascentes.
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O planalto central transpira cerrado: vegetação casquenta,
tiguerada, suberosa; clama aos céus: joelhos e juntas dobradas. Abaporu de
Tarsila do Amaral espreita-nos disfarçadamente. Assenta raízes no descampado. Percebe-se
na paisagem esmaecida, um pedido disfarçado de clemência. Não por acaso, contrariando o cenário, chove
torrencialmente nos últimos dias – tardezinhas de dezembro, 2011. E que
aguaceiros! A água brota de onde menos
se espera, ganha corpo, avança, toma ares de córrego novo. Barulhentos, emborcam.
Aqui e acolá, saltando entre reentrâncias
de metaquartzito, um calango mira de canto de olho... Estranhos por ali, uai!
Ora, estávamos em Pirenópolis, depois ficamos sabendo: cidade
histórica. O Rio das Almas cruzando sorrateiro, a meia ponte, o casario com
cara do século XVIII. Fantasmas parecem
circular à noite, vasculham pousadas. Escravos portam bolsas de diamante, e as
depositam nas margens da atrevida cachoeira, abaixo da meia ponte, aos olhos Da
Santa Padroeira, Nossa Senhora do Rosário.
A pousada, ao alto, foge do padrão; inova, projetando amplos
espaços ajardinados. Apartamento rústico, mas confortável. Lençóis macios, crocantes. Anoitece e nos recolhemos, sem não antes
auscultar vozes, elucubrações: caravanas invisíveis empilham arroubas de ouro
na praça; fidalgos portugueses confabulam.
O roteiro, com o Paulo e a Júlia que nos ciceroneiam,
inclui achegos a remansos e cachoeiras, percorrer trilhas, excursionar nas
bordas dos Pireneus, montanhas que circundam o imenso vale de São Patrício.
Antes, porém, logo cedo, vadiagem, percorrer a vila, caminhada de
reconhecimento; como dizem os topógrafos: levantamento expedito.
Percebe-se o capricho da boa gente: o casario histórico, tipicamente
lusitano conserva traços de originalidade. Predominam pequenos bangalôs
esbranquiçados, janelas miúdas pintadas de azul. Repetem-se monoliticamente. A
loja Maçônica, mistiticidade aflorando, impecavelmente preservada, desperta a
atenção. As ruas calçadas com pedras escuras, afinadas e irregulares, revelam
tipicidade local – a abundância de rochas naturais – terra de mineração.
O rio, a denominação, segundo constatamos
em documentos da Igreja Matriz, deve-se ao lusitano Manoel Rodrigues Tomar. Se
lograsse êxito na mineração de diamantes, o primeiro recurso obtido seria
destinado a encomendar missa às almas. As almas, agradecidas, brindaram a
cidade com águas abundantes e cristalinas. Secular, o rio das Almas corta a cidade
dorsalmente, testemunha ocular da história.
E a meia ponte - famosa meia ponte de Pirenópolis
-, embora parecendo pouco adequada para os novos tempos, abriga nas cabeceiras
vistosa laje; justamente ali, e àquela hora – sete da manhã- um grupo de
pessoas – homens mulheres e crianças -, cantam e dançam, parecem ambientados; e
vendem artesanato: folhas de palmeiras trançadas, enormes palmas. Adiante, no portal turístico, apanhamos
alguns folders... Informam sobre as
tradições culturais, evocam a cultura moura: cavalhadas, festa do divino, desfiles,
fandangos, artesanato, ambientalidades e afazeres típicos.
Eis que encontro o que subliminarmente
procuro: sebo. Não sem emoção, adentro a construção histórica - ares de anos
rodados - percebe-se. Vasculho, procuro
por livros que falem da boa terra. Dou sorte, encontro uma joia: “Meia-Ponte do
Rosário, Pirenópolis” de Luiz Aquino (Crônicas). Depois, ficamos sabendo: no
mesmo local há uma mostra das obras de Roque Pereira - coincidências das
coincidências.
Quanto à jornada, refeitas as energias, obstinados, partimos;
destino: cachoeira do Rosário, rio Araras, nascentes do Tocantins, sim do
grande Tocantins da bacia amazônica.
Após
percorrer bom trecho, rompendo vaus, buritizais e moitas de guarirobas, cruzando
fazendolas cobertas de braquiárias africanas, e áreas degradadas: resíduos de mineração
expostos e amontoados a céu aberto, eis que no alto do vale, no platô, nos
deparamos com um ambiente paradisíaco: o rancho de Demócrito Pereira.
O lugarejo surpreende: o rancho, os pilares sustentam-se em
lâminas de metaquartzito; os acessos, caprichosamente revestidos, emprestam
rusticidade à paisagem. Somos recebidos por um jovem simpático e falante – fala
cantada –, apresentou-se como Renato – o cozinheiro. Incontinenti nos conduz
até à varanda, mostra o vale de São Patrício. Aproveitamos, batemos foto.
Renato informa que um grupo acabará de partir, mostra a trilha na mata. Pede
que tenhamos cuidado. Há percalços, declividades, degraus foram carregados pela
última enxurrada, comum no verão. Antes
da partida, solicito, nos convida para provarmos um aipim frito com
torresmo. Faz questão de dizer: - sintam-se
à vontade, a cachaça à mesa ao lado, é goiana, e da boa.
Como não queríamos perder a vazada, partimos. Pé na trilha.
Cajados são fornecidos - uma vara de pau
– espécie de muleta -, único meio de seguro de movimentar-se nas ribanceiras. Pouco a pouco nos aproximando-se do grupo,
sendo recebidos por Demócrito, o guia. À frente seguia um casal, Adailton e sua
esposa, ambos de Brasilândia.
Demócrito, figura simpaticíssima nos recebe amistosamente,
de forma efusiva. Baixo, falante, olhos amendoados, cabelos escuros e lisos, cajado
à mão, mochila às costas - dada a dificuldade de movimentação -, nos orienta
como portar-se para evitar quedas e sobressaltos. Única recomendação: não sair da trilha, pois há
risco de cobras no trecho. A revelação nada amistosa mexe com o aparente
sossego de Ângela e Júlia. E mais, arrepiam-se, quando num trecho, Demétrio
subitamente pára, respira fundo e nos alerta; insinua a possível presença da
víbora- cheiro acre no ar; para nossa sorte, nada vemos no entorno.
Demócrito, depois ficamos sabendo, vem travando um luta
desigual. Opondo-se à mineração predatória com raízes históricas em Pirenópolis,
ousado, estabeleceu em apenas três alqueires de terra, uma espécie de oásis representativo
da rica paisagem regional. A paisagem, naturalmente, desperta a atenção dos
visitantes. Encanta. Mais ao alto, próximo do rancho, o cerrado
raquítico, retorcido e, nas proximidades do córrego Araras e da Virgem, outra
nascente, assim denominada por ele, desponta uma vegetação robusta, viçosa,
própria das grotas úmidas – chamada mata de galeria. Buritizeiros, cipós, canela de grota, jatobás
e árvores entroncadas dominam a paisagem.
O pau breu – medicinal – exala essência incomum, agradável.
No fundo do vale, protegida pela vegetação... Águas
cristalinas. Água mineral diz Demócrito. Os paredões laterais, íngremes e
entrecortados, expõe o tempo geológico: mica embaixo – rocha escura -,
metaquartzito laminado ao meio, parecido com mármore e, na parte superior, aflorando,
a rocha já deteriorada - o neossolo: uma mistura de areia e material sólido
carcomido pelo intemperismo secular.
A região,
estudos geológicos apontam, no período Devoniano (era dos peixes) - há cerca de
400 milhões de anos -, estava coberta por extenso mar; daí a formação
sedimentar, tipicamente do altiplano central. A partir de então, diante o recuo
marinho, gradativamente ao longo do tempo, adquiriu os contornos e tonalidades
atuais. Fato marcante: a missão Luiz Cruls (1894) - Comissão do Planalto
Central do Brasil -, estuda a flora, fauna, geologia, tornando-a conhecida;
elabora minucioso relatório que, segundo consta, visava encontrar local
apropriado para a fundação da futura capital do país – mais tarde Brasília.
Daqui, discorre Demócrito, saiu muito diamante, muito
mesmo. Monturos, escolhos e matacões
foram o que restou, mais nada. O povo mesmo, pouco tirou proveito; os abastados
levaram tudo. No caminho, no rastro, a destruição: mais escórias, muitas escórias aqui, acolá, por todo o lado.
Pondera
Demócrito, finalmente a região vai se recuperando, o meio ambiente respira
aliviado, mas não sem esforço. Quando adquirimos esse trecho, eu e minha
esposa – professora – e também ecologista de primeira hora, projetamos recuperá-lo,
e fazer do sítio local de visitas, o nosso ganho pão. Imaginem se alguém,
exceto a gente, botou fé no projeto. Chamaram-nos
de lunáticos. Apostaram no pior. Não desistimos nunca, e nunca desistiremos;
mostrava determinação Demócrito.
Tomado de entusiasmo, olhando as ribanceiras, bate no
peito... O que vocês acham:
- Valeu ou não, a
pena? Todos o aplaudimos... Eis o novo Robin
Wood do cerrado. Demócrito ergue bem
alto o cajado, e brada:
- Agradeçamos a Deus por isso, por essa paisagem
maravilhosa. Motivados, seguimos adiante, passando por esplendorosa queda d’água
(rio Araras). Desprendendo-se do paredão de rochas, sacode, esguicha e se
espalha num dócil remanso, forma reservatório cristalino, acolhedor. Adailton e
a esposa banham-se; sacudimos a água. Perguntamos por peixe. Esse é um mistério dessas
nascentes, informa Demócrito, apenas alguns pequenos lambaris, e nada mais.
Curiosidade: a serra dos Pireneus – evoca similar na Europa
-, e segundo os historiadores, a denominação foi dada por catalães, habitantes espanhóis
presentes na região, ainda no século XVII. O espinhaço dos Pireneus é bom que
se diga, rico em nascentes, divide o Brasil ao meio: metade das águas se dirige
para a bacia Amazônica – ao norte -, e a outra, para a bacia do rio Paraná – ao
sul.
Agarrado a num possante cipó decumbente no meio da trilha –
Demócrito faz questão de enfatizar: Pirenópolis é dessas vilas que viveram
várias ecdises: o ciclo da mineração com suas mazelas, a exploração predatória
dos recursos naturais, o enriquecimentos de poucos, mortes estúpidas, a
desgraça, o abandono de muitos, os rejeitos e cavas, cicatrizes expostas. O
desmatamento desenfreado, o cerrado cedendo espaço ao pasto, ao boi. O resgate do patrimônio histórico, coisa
recente, trouxe algum alento, mas ninguém vive somente do passado, precisávamos
de novas alternativas, de algo a mais. A descoberta do ecoturismo, do valor da
paisagem regional, das matas de galeria, do mistério e das riquezas do cerrado:
fauna e flora, do folclore e da gastronomia regional, abriu um novo ciclo, trás
alento, renovação. Apostamos na sustentabilidade: desenvolvimento econômico e
social com equilíbrio ambiental. Muitos questionam, principalmente os mais
tradicionais. Há uma chaga aberta;
precisamos cicatriza-la aos poucos; paciência também cura.
E reitera: nós, filhos dessa novíssima geração
não só acreditamos nesse novo olhar, como estamos investindo nele. Pessoas de
formações diversas atuam conosco. Bem informar, bem conviver com a natureza,
eis nosso horizonte. Aqui o – o planalto
central: imenso platô - racha-se ao meio: espigão central, esteio, cumeeira,
evocando a meia ponte. As bacias
hidrográficas, as nascentes – qual Janus de faces opostas distancia-se: marcham
para o norte e para o sul. O ciclo da mineração, exaurido, faz contraponto aos
serviços ambientais. Novos lides à vista.
Alvissaras! A valorização do
homem não contra a natureza, mas a favor da mesma, sinaliza tempos de maturidade.
Concordamos. Faz bem à alma ouvir pessoas jovens e
idealistas como Demócrito.
Depois da aula sobre meio ambiente, de nascentes, de
natureza, exaustos, já no meio da tarde, adentramos ao rancho. Descanso e
comida, todos pediam. Via-se nos olhos.
Renato não perdera tempo: apresenta o fruto de seu trabalho: bom de
cozinha, fogão à lenha, oferece uma saborosa comida goiana: macaxeira ao molho
de frango caipira, couve, quiabo e abóbora refogados, nacos de carne de porco, arroz
com pequi, feijoada, torresmo crocante, porções de guariroba, saladas, pimenta
e jurubeba, e saborosa sobremesa: baru e cagaita, frutas nativas, paçoca de
pilão, doce de mangaba e pequi ao caldo. E precisava mais: - Provoca Paulo. Servimo-nos à vontade, direto no fogão. Enquanto almoçamos, Demétrio fala de seus
projetos futuros. Melhorias, muitas melhorias, mas sem essa de energia
elétrica, cães e gatos. Ali só a selva, a natureza virgem e indomável – os
animais selvagens que pode ser vistos de manhãzinha ou no começo da noite.
Ressabiados, devagar, estão retornando. -
Bato palmas, e eles aparecem, fala Demócrito orgulhoso, inclusive uma
jaguatirica.
Alguns móveis
rústicos: mesas e bancadas, torneados a capricho, chamam a atenção de Júlia,
estudante de arquitetura na Universidade de Brasília. Demócrito informa que o
marceneiro e artista é seu pai, Roque Pereira, para produzir a mobília utiliza
sobras de madeira e material de rejeitos, e aí reside a inovação. Originalíssimo, alia praticidade a design
ousado. O poeta e cantor Arnaldo
Antunes, ao descobri-lo, fez questão de prestigia-lo, mobiliando sua morada com
tais raridades. Júlia faz questão de
conhecer o local de trabalho do artista, lugar arredio, - Mata Velha - nas
proximidades de Pirenópolis.
Após tirar uma boa soneca em redes adrede instaladas na cumeeira
do rancho - descansados e deslumbrados -, partimos não sem desmedida dose de
emoção. E, Demócrito, o anfitrião, não perde a vazada, aproveita o momento; brada
eufórico:
- Voltem, voltem sempre, teremos imensa satisfação em
recebê-los novamente no sítio das nascentes – córrego da Virgem e riacho Araras
-, cabeceira do vale de São Patrício.
Ao partirmos,
num gesto ousado - o novo Robin Wood do cerrado -, ergue o cajado bem ao alto. Acena calorosamente. (Onévio A. Zabot – Pirenópolis, 21 de
Dezembro de 2011).